O maior desafio foi não ter nenhuma referência de liderança feminina’, diz vice-presidente da Natura

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Por Karina Trevizan, G1

 


Josie Peressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1Josie Peressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1

Josie Peressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1

Quando era mais jovem, a engenheira Josie Peressinoto Romero foi convidada por seu chefe para trocar de área na empresa, mas para isso teria que se mudar de estado. Foi o que ela fez, com o marido e os filhos, em um período que para ela foi de intenso crescimento profissional. Mas isso quase não aconteceu. Meses depois, o chefe contou a ela: “eu achava que não deveria te oferecer essa vaga porque iria criar um tumulto na sua vida familiar”.

Josie ri ao se lembrar do episódio, e o encara com bom humor. Hoje, ocupa uma posição importante de chefia em outra empresa. E a experiência de “quase” não ser convidada para um novo posto também faz parte de suas decisões como líder. “Hoje, toda vez que surge uma vaga, eu falo assim: ‘oferece para a Fulana’. ‘Mas a Fulana acabou de ter bebê, acabou de casar’. E daí? Vamos oferecer, porque pelo menos ela vai saber que ela foi considerada. Se ela não quiser ir, foi uma decisão dela. Mas vamos dar condições. E tem vários casos de ‘mas ela nunca vai querer’ em que ela foi, e se desenvolveu.

“Falta de referência de liderança feminina foi um desafio”, diz vice da Natura

Formada em engenharia, Josie teve que lidar, ao longo de toda a sua carreira, com ambientes predominantemente masculinos. E foi nesse ambiente que sua aptidão para tarefas de liderança se destacou logo no início – o que se tornou um desafio a mais pela falta de referências femininas à época.

“Eu poderia ficar horas contando os desafios que eu enfrentei nesse quesito”, diz Josie. “Mas, de todas as dificuldades que enfrentei, a maior sem sombra de dúvida foi não ter nenhuma referência de liderança feminina. Naquele momento, há quase 28 anos, quando eu comecei a minha carreira, não existiam mulheres que optavam por uma carreira similar à minha. Então, todos os meus chefes – até hoje – foram homens. Eu nunca tive uma liderança feminina próxima. Você não tem referência”.

Josie ocupa hoje o cargo de vice-presidente da área de operações e logística da Natura. Ela diz que as meninas que estão começando a carreira agora encontram algumas portas abertas que, em sua época de iniciante, ainda eram barreias. Mas acrescenta que há um longo caminho a percorrer.

“As meninas são tão capazes quanto os meninos. Elas só precisam ser estimuladas a isso. Eu falo isso para as minhas filhas todo o tempo: ‘vocês podem. Escolha o que você quer fazer. Você não precisa ser o que os outros acham que você precisa ser'”.

Como foi a escolha pela carreira de engenharia?

Meus irmãos e eu somos a primeira geração da família que conseguiu ir para a universidade. Tenho 52 anos, sou a mais nova de três irmãos. Eu era muito curiosa, e desde pequena eu sabia que eu queria fazer algo relacionado à área de ciência, tecnologia. Eu fui fazer engenharia. Naquele momento tinha poucas mulheres que tomavam a carreira de engenharia. Nos últimos anos, os meus estágios me levaram a confirmar a minha paixão por trabalhar com gente e com máquinas. Fui trabalhar em fábricas, e adorei o ambiente – que era um ambiente super masculino. Me identifiquei com os desafios que aquele ambiente trazia.

E como chegou às posições de liderança?

Eu entrei no programa de trainee de uma multinacional de bens de consumo, onde aliás fiquei durante 19 anos. Quando eu comecei a carreira como trainee, eu fui trabalhar num projeto que eu tinha que fazer uma grande mudança. Acho que eles eram meio loucos e me deram um projeto superimportante. Um grupo enorme de pessoas, todos eles homens, operadores de uma fábrica. A fábrica estava se automatizando e eu tinha que mudar totalmente a tecnologia, convencer aquelas pessoas que elas precisavam fazer diferente.

Naquele momento eu pensei: como eu vou ganhar essas pessoas? Eu era muito jovem, 22 anos. Então, eu aprendi que uma das maneiras é você se aproximar e fazer o que as pessoas fazem. Eu fui operar, fui trabalhar nos três turnos, fui ficar próxima para entender o desafio que eles tinham para fazer. E esse é um dos maiores aprendizados que eu tenho até hoje. Qualquer posição que eu assumo, eu me aproximo muito de quem faz acontecer para entender os desafios. A partir daí eu senti que tinha uma capacidade de engajar as pessoas, e liderança é engajar.

Você conviveu com ambientes majoritariamente masculinos ao longo da carreira. Em quais momentos isso chegou a ser uma questão para você?

Eu poderia ficar horas contando os desafios que eu enfrentei nesse quesito. Mas, de todas as dificuldades que enfrentei, a maior sem sombra de dúvida foi não ter nenhuma referência de liderança feminina. Naquele momento, há quase 28 anos, quando eu comecei a minha carreira, não existiam mulheres que optavam por uma carreira similar à minha. Então, todos os meus chefes foram homens. Eu nunca tive uma liderança feminina próxima. Você não tem referência. Eu queria ser uma líder boa, completa. Não queria que as pessoas tivessem medo de mim ou me respeitassem pela hierarquia.

Tive que encontrar esse caminho de liderança, até para ser respeitada num ambiente que tinha um padrão de liderança que era ‘eu mando, quem tem juízo obedece’. E a minha maneira de atuar nunca foi essa. Então, muitas vezes eu tive que convencer aos meus chefes que eu ia dar resultado. Que eles tivessem paciência. Que, apesar de eu ser uma pessoa que estava indo por um caminho diferente, aquilo ia ser sustentado ao longo do tempo.

No começo eu tive que construir essa credibilidade. A maior dificuldade foi essa, e é minha maior bandeira hoje, conseguir ajudar as meninas que querem ter uma carreira em áreas que não seriam obviamente naturais para as meninas se interessarem. Há 30 anos você não via mulheres gerenciando fábrica, gerenciando um grupo grande de operários ou qualquer outra atividade. Então, a gente que conseguiu construir essa história tem essa responsabilidade de não deixar que as meninas passem por essa ausência de padrão, de inspiração.

Você menciona a palavra “convencer”, fala em “provar que tinha credibilidade”. Isso foi uma barreira?

Até você chegar num ponto em que você começa a dar resultado, você tem um período em que as pessoas estão te olhando, isso é natural. Eu faço isso com o meu grupo também. Mas quando você é diferente, você chama mais atenção. O diferente chama atenção. Uma mulher que gerencia um grupo de homens, todos mais velhos que ela, no chão de fábrica, chama atenção. As pessoas podem falar ‘eu não acredito nela’ até que ela mostre a que ela veio. Acho que isso está mais fácil hoje, você tem exemplos de meninas que são super respeitadas logo no início. Isso ao longo do tempo vem melhorando.

Que portas você acha que as mulheres que estão começando agora encontram abertas e que na sua época de iniciante ainda não era o caso?

Tem isso de ter modelos para se inspirar, e outra coisa é que as empresas sérias já enxergaram o valor de ter diversidade no seu grupo de liderança, em todos os seus escalões. Isso não é válido para todas as empresas, todos os setores, mas, sim, a gente tem empresas muito sérias que já estão criando condições. E eu falo sempre que não adianta você falar só das meninas. Você tem que falar dos meninos também.

Eu me preocupo muito que os meninos do meu time, por exemplo, tenham a possibilidade, se eles quiserem, de buscar o filho na escola, de participar de uma reunião de pais e mestres, de ir no médico, porque eles também têm esposas que trabalham. Na Natura, a gente começou com o berçário só para as mães, agora o berçário é para os pais também. Isso é uma ferramenta para fazer com que haja um equilíbrio, uma divisão de responsabilidades entre os meninos e as meninas. Quando você quer estimular a diversidade de gênero, não adianta você só fazer políticas para ajudar as meninas. Você tem que fazer políticas para equilibrar as forças.

Como foi sua experiência de maternidade? Foi difícil conciliar com o crescimento profissional?

Na primeira vez em que eu fiquei grávida, a empresa em que eu estava tinha feito uma grande aquisição e eu tinha sido mudada de cidade para gerenciar essa aquisição. Eu tinha 28 anos e no primeiro dia nessa nova posição eu descobri que estava grávida. Eu falei para o meu chefe: ‘pode contar comigo, eu vou trabalhar até o último dia, me fale o que você quer que eu entregue nesses nove meses que eu vou entregar, vou superar tudo’. Eu fiquei os nove meses. Tirei 4 meses de licença. A Isabela nasceu, minha filha mais velha, que hoje tem 22 anos – e faz engenharia, ‘by the way’.

Quando eu voltei, fui promovida de novo. Na segunda filha, foi a mesma coisa. Eu tinha sido movimentada para uma posição, fiquei grávida, e quando eu voltei fui para outra posição. É incrível como, para mim, a maternidade era uma coisa que eu queria tanto, que foi o momento em que eu me senti mais poderosa. Nenhuma posição de carreira me deu a sensação de tanto poder como estar grávida.

Do ponto de vista de filhos, não dá para dizer que foi simples. As meninas tiveram que ir para a escola super pequenas. Tem aquela fase em que a criança fica doente, você fica aflita de não estar direto com a criança. E tudo isso foi passando, eu fui aprendendo a lidar com isso. E todas as inseguranças, culpa de não conseguir ir naquela reunião de pais ou consulta médica, fui aprendendo a lidar com isso. E eu tenho a benção de ter um marido que divide absolutamente tudo comigo. Por isso que eu falo que é tão importante a gente falar para as meninas e para os meninos juntos.

Josie Pressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1Josie Pressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1

Josie Pressinoto Romero, vice-presidente da área de logística e operações da Natura — Foto: Celso Tavares/G1

Se lembra de algum episódio em que ser mãe pode ter influenciado a forma como você é vista como profissional?

Eu lembro de um chefe meu que me disse assim: ‘eu não te ofereci aquela vaga, Josie, porque você nunca ia aceitar, né? Porque era em outro estado’. E ele me falou isso depois que ele me ofereceu a vaga. Depois de vários meses, ele não conseguiu ninguém para a vaga, ele veio falar comigo. Eu falei: ‘poxa, é um sonho ir para lá, deixa eu falar com meu marido’. Meu marido pediu demissão, conseguiu um emprego nesse outro local. A Isabela era pequeninha, e a gente foi para Goiás.

Meu chefe falava: ‘eu achava que não deveria te oferecer essa vaga porque iria criar um tumulto na sua vida familiar’. E hoje, toda vez que surge uma vaga, eu falo assim: ‘oferece para a Fulana’. ‘Ah, mas a Fulana acabou de ter bebê, acabou de casar’. E daí? Vamos oferecer, porque pelo menos ela vai saber que ela foi considerada. Se ela não quiser ir, foi uma decisão dela. Mas vamos dar condições. E tem vários casos de ‘mas ela nunca vai querer’ em que ela foi, se desenvolveu.

A maternidade te ajudou no trabalho?

A maternidade te dá a clara dimensão de quão imperfeito você é. Não tem pessoas que mais falem dos meus defeitos do que as minhas filhas. O fato de eu ter as duas em casa e elas calibrarem a minha imperfeição me ajuda muito a trabalhar aqui. Porque eu acabo conseguindo conviver com opiniões diferentes da minha. Eu aprendi muito a acolher a diversidade, a acolher pontos de vista diferentes do meu a partir do exercício da maternidade.

A associação mais imediata que se faz é a de que a maternidade atrapalha a carreira porque mulheres saem de licença, crianças ficam doentes etc. Para você, essas questões então são menores?

Muito menores. O que eu percebo das mulheres que trabalham comigo são vários exemplos de quão eficientes são essas meninas. Inclusive tem uma estatística. Eu vi isso na vida real, no nosso call center. O maior nível de engajamento vem das mulheres mães. Porque elas têm uma responsabilidade, elas têm um filho, elas sabem que elas estão sendo olhadas, são o exemplo para os filhos.

Ao longo da minha carreira, entre as mulheres que trabalharam comigo, eu não senti nenhum tipo de perda de eficiência ou produtividade por conta de elas serem mães. Por isso que eu falo muito disso, de quão importante é criar um ambiente onde as meninas não tenham que escolher. ‘Se eu quiser virar diretora nessa empresa, eu não vou poder ser mãe’. Isso é um absurdo. É o maior pecado que pode existir. É muito injusta a escolha. Você não vai ter nem uma profissional feliz e nem uma mãe feliz.

Apesar de os números mostrarem que a realidade ainda está longe do ideal, as suas expectativas são positivas?

As minhas expectativas são positivas, mas a gente tem que acelerar. Porque a gente está muito sub-representada. As empresas estão desperdiçando oportunidades de não ter mulheres representadas nas suas posições de liderança. É um desperdício enorme de talento e de resultado. Eu sou otimista porque eu acho que, do ponto de vista do começo da cadeia, que é as meninas poderem escolher carreiras que na metade do século passado eram impensáveis para as mulheres, elas já estão escolhendo.

Você olha para as universidades e você já vê uma representatividade grande de mulheres em várias carreiras em que não existiam mulheres. Isso já é o primeiro passo. O meu otimismo é que pelo menos a questão da porta de entrada a gente resolveu. O que a gente ainda não fez bem é o crescimento dessas meninas dentro da carreira. No topo da pirâmide, você tem muito poucas mulheres.

Objetivamente, onde você acha que devem começar essas mudanças?

Tem vários desafios. Um deles, que é superimportante, é o das famílias. De propiciar dentro de casa a formação para os meninos e para as meninas. Tem que estar claro para os meninos que eles vão ter parceiras, e as meninas podem sim escolher profissões que não eram “típicas” de mulheres escolherem.

Depois, na escola, tem que fazer com que as meninas também demonstrem suas habilidades analíticas. Porque até pouco tempo atrás existia o estereótipo de que a menina é boa em relações, em cuidar de pessoas, e os meninos são bons em cálculo. Isso é um estereótipo ridículo. As meninas são tão capazes quanto os meninos. Elas só precisam ser estimuladas a isso. Se elas quiserem. Se elas não quiserem, fazem o que elas querem. Mas elas não podem deixar de saber que elas podem fazer. Eu falo isso para as minhas filhas todo o tempo: ‘vocês podem. Escolha o que você quer fazer. Você não precisa ser o que os outros acham que você precisa ser’.

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