DE ESTAGIÁRIA A PRESIDENTE

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Como Juliana Azevedo chegou ao cargo máximo da P&G Brasil acreditando desde sempre que estaria no topo

CLAUDIA DE CASTRO LIMA

Em 1996, Juliana Azevedo, então uma estudante de engenharia industrial na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e de direito da Pontifícia Universidade Católica, conseguiu um estágio na área de cuidados femininos da Procter & Gamble Brasil. Na época, a empresa, que hoje conta com marcas como Gillette, Oral-B, Always, Pampers e Pantene, entre outras, não contava com portfólio tão extenso. A ideia de Juliana era concluir seu estágio em dois anos e lançar-se no mercado em busca de uma empresa maior. O objetivo ela já tinha bem traçado: queria ocupar um cargo de liderança.

O plano de Juliana deu errado, mas, no longo prazo, revelou-se certeiro. Ela identificou-se com os valores e o propósito da P&G – que, desde a década de 1970, já tratava de temas como equidade de gênero e apostava em políticas de valorização e retenção de talentos – e de lá não saiu mais. Foi galgando, degrau a degrau, sua ascensão ao topo e, após 22 anos, em 2018, chegou ao cargo máximo. Como a primeira mulher no país a se presidente da P&G, o desejo da jovem Juliana, hoje com 45 anos, se tornava real. “Mesmo lá atrás, meu sonho não tinha tantas cores e adjetivos”, diz ela, referindo-se à empresa.

Lá, Juliana acumulou experiências em marketing, vendas, planejamento estratégico e gestão. Foi crescendo junto com a P&G, atuando com as marcas dos segmentos de cuidados femininos e cuidados com o bebê, que, sob sua batuta, conquistaram liderança no mercado. Ela também ajudou na construção do negócio de beleza da P&G no país com Pantene e chegou a vice-presidente de cuidados com a beleza para a América Latina. Quando assumiu o post de CEO, ela era havia três anos vice-presidente global de cuidados femininos.

Na empresa, com 40% do quadro de funcionários e 50% nos cargos de gerência para cima ocupados por mulheres no país, Juliana encontrou um terreno amistoso quando resolver ser mãe. “Me senti muito apoiada quando engravidei. Eu era diretora de marketing e vendas, estava acumulando as posições em um cargo que criaram para mim, porque a companhia tinha me oferecido a presidência de uma unidade na América Latina, mas sair do país, que era a exigência, não era um bom movimento para a minha família”, conta.

Dividindo hoje seu tempo entre o filho, a P&G e outras responsabilidades – em instituições como Câmara Americana de Comércio, Unicef e United Way -, ela afirma que só com muita disciplina é possível cuidar de uma agenda tão atribulada. “Para mim, ser uma boa mãe não é estar 100% do tempo presente. Minha definição de boa mãe está na qualidade desse tempo”, afirma. “Há momentos que criam vínculos ou que são críticos para o desenvolvimento que não são negociáveis. Quando fui morar nos Estados Unidos e meu filho começou as aulas, por exemplo, eu teria que ir para a França a trabalho. E falei: ‘Não vou’. Acordava 3h da manhã para participar das reuniões online, mas fiquei com meu filho.”

Você tinha 13 anos quando começou a trabalhar. Por que tão cedo?

Tinha uma admiração muito grande por pessoas à minha volta, familiares, amigos, que tinham senso de realização, gente que conquistava coisas. Estudei inglês e desde os 13 tinha fluência. E tinha essa vontade de fazer e acontecer. Então, além de dar aula particular, comecei a fazer tradução, queria autonomia. Não sei o que queria fazer com o dinheiro, mas buscava ter uma sensação de “consigo cuidar de mim mesma”, sabe? Sou filha única de pais que conseguiram me dar uma noção de pés no chão, apesar de, como empresários, me proporcionarem o melhor da educação, cultura, acesso, carinho, cuidado e amor. Então eu já tinha o bichinho da curiosidade e da independência, e eles incentivaram isso.

Já tinha também essa imagem, em sua mãe, de uma mulher independente e líder?

Sim. Hoje, aos 75, ainda é empresária. Ela fez muito trabalho social quando era novinha e sempre tive nela a figura de uma mulher que fazia as coisas acontecerem, mesmo que na época dela não fosse tão bacana ser assim – era até malvisto uma moça trabalhar, né? Mas ela ia. E, por causa dos meus pais, acho que associei líderes a pessoas que fazem as coisas acontecerem com os outros. Vi a manifestação da liderança em diferentes papéis e isso me ajudou a identificar comportamentos, e não simplesmente formação acadêmica, às competências de um líder.

E você já sabia que queria ocupar uma posição de liderança em sua carreira?

Sim. Desde que fui estagiária sabia que queria ser líder de uma grande empresa. Logo que entrei na Poli [ela é formada em engenharia industrial] fui trabalhar na empresa-júnior. Meu primeiro cartão de diretora foi de lá – e eu guardo até hoje, porque, imagina, com 17 anos eu tinha um cartão de diretora [ri]. Fiz duas faculdades porque entendi que precisava ter uma formação em exatas, mas também uma em humanas. Via isso na minha mãe e no meu pai, que são perfis bem distintos, e em outros líderes próximos. Elas eram pessoas que transitavam muito bem entre esses dois universos, com skills em ambos. E fui buscar essas competências.

E como você chegou na P&G?

Entrei como estagiária. E foi pelas mãos de uma colega politécnica, mais velha do que eu, que na época estagiava lá. Eu buscava estágio em empresas fortes em marketing e vendas, porque queria aprender mais dessas duas áreas. Além da empresa-júnior, trabalhei em uma imobiliária pequena e aquilo me encantou. Vi que realmente não sabia nada de vendas e que a faculdade não ia me ensinar. E essa minha amiga falou que achava que os princípios, os valores e a famosa cultura da P&G teriam uma afinidade muito grande comigo. Na época, eu pensei: “Cultura? Oi? O que é isso?”. Mas achei interessante. A P&G não era nada, não tinha quase nenhuma marca conhecida. Entrei para ficar dois anos e estou há 24.

Você imaginava ficar na empresa apenas o tempo do estágio?

Sim. Meu plano era fazer o estágio na P&G, não tinha clareza que seria efetivada, faria uma carreira e me apaixonaria por lá. Era esse meu plano, nem sabia se teria uma oferta. Não tinha um planejamento de carreira tão estruturado, mas costumo fazer visualizações: “É lá que quero estar”. Gosto de fazer isso e a partir daí ir criando os passos. Porque acho também que, se você tem só um plano, você se amarra e há chance de ter uma frustração ou deixar alguma oportunidade importante passar. Então tinha um norte, mas estava aberta a diferentes caminhos para chegar lá.

Mas como aconteceu essa ascensão de estagiária para CEO?

Para responder a isso, preciso falar um pouco da P&G. Uma das políticas da empresa é a Promote From Within [promover internamente]. A maior parte do nosso corpo gerencial entrou como estagiário ou supervisor nível 1, mais de 70% dos presidentes da companhia entraram no início da carreira. Sempre digo que, como a gente passa muito tempo no ambiente de trabalho, temos dois caminhos: ou escolhemos um local que tenha afinidade com nossa forma de ver o mundo ou temos muita chance de nos tornar bandeirante na empresa, no sentido de desbravar e promover a transformação daquele local, para não vivermos frustrados. Tive a sorte de ter essa amiga porque estou em uma empresa que já falava da equidade de gêneros desde a década de 70 e 80. Inclusão racial, suporte à mulher, orientação sexual, isso tudo são coisas que fazem parte do nosso diálogo muito antes de aparecer na mídia.

Essa, no entanto, ainda não é a realidade de muitas empresas.

Quando a gente vê os números e as estatísticas, percebe que falta muito, de forma geral, para chegarem lá. A inclusão de gênero é só um dos vetores, né? Na P&G falamos muito que a questão de inclusão, diversidade e equidade é um tópico horizontal, sabe? Precisamos ter foco para progredir, então temos métricas para progredir. O que buscamos, no fundo, é de um ambiente que seja o mais autêntico possível, em que as pessoas possam ser elas mesmas e em que a empatia prevaleça. Há um progresso importante do lado feminino, não há a menor dúvida, mas ainda temos muito que caminhar, eu acho que no sentido inclusive mais amplo do que só empoderamento feminino.

Lucas Seixas/UOL

Que vantagens uma organização assim tem em relação a outras?

Não vejo como vantagem, e sim como uma estratégia para entregar o resultado. Podemos ter o melhor produto e o melhor algoritmo, se organização não estiver saudável, não vai funcionar. E organização saudável é aquela que tem essa diversidade, essa empatia, que tenha os talentos bem treinados. Isso é simplesmente meu oxigênio, não faço nada sem eles. Acho que as empresas que pensam em desenvolvimento organizacional, diversidade e inclusão como aquele último tópico da agenda também não tem como dar certo. Tem que ser “core strategy” [estratégia principal].

Como você define seu estilo de liderança?

Mesmo lá atrás, quando eu sonhava em ser líder, meus sonhos não tinham tantas cores e adjetivos. E desde que assumi a posição, em fevereiro de 2018, penso sempre em trabalhar com e para a organização – e não o contrário. Meu objetivo era acelerar nosso crescimento e trazer um centro de inovação para o Brasil – e nós o inauguramos em maio, só tem 14 centros assim no mundo. A segunda coisa é muita transparência. Tenho muitos canais de comunicação. Falo com toda a organização uma vez por mês – e, nos primeiros meses de pandemia, foi uma vez por semana. E tenho meu Instagram 100% profissional, em que recebo ideias que as pessoas não dão no meu e-mail. Acho que essa transparência gera confiança. Posso sentir que tenho 4.000 funcionários ao meu lado, com quem posso conversar, trocar ideias. Isso é muito valioso e se provou ainda mais durante essa pandemia. Mas eu não tinha facilidade de dar feedback negativo.

Acha que é mais difícil para as mulheres darem feedback negativo?

Sim, apesar de não conhecer nenhuma estatística que prove isso – só as que mostram que temos dificuldade em pedir aumento de salário e que achamos que nunca estamos preparadas. E eu às vezes queria dizer “seu trabalho está péssimo”, mas dizia “olha, ele não está muito bom”. O que é bem diferente, certo?

Então até hoje, quando vou passar uma mensagem mais firme negativa, me preparo antes. Vou com meu caderninho, que é minha cola. Mesmo com meu chefe, se tenho que falar alguma conversa que considero “tough conversation” [conversa difícil], levo minha cola para ter certeza que o vocabulário que estou usando transmite a ideia que eu quero passar. Acho que o que fica disso é a necessidade de você também se conhecer, conhecer quais são os seus pontos fortes e fracos – e daí criar os mecanismos para se ajudar e não se boicotar. Muitas vezes depois eu mando um resuminho por escrito ou peço para a pessoa mandar o que entendeu, porque a comunicação é o que a pessoa entendeu e não o que eu disse, certo?

Lucas Seixas/UOL

 

A P&G é de um segmento que não foi tão afetado pela pandemia. O que ficou de aprendizado dela para a companhia?

Você tem razão, nosso segmento não foi tão afetado. Tenho plena noção de estar em uma empresa que tem princípios e valores – e é na crise que você vê também o caráter da empresa se manifestar. Lindamente, durante toda a crise, lideramos com três focos: manter saúde e segurança das pessoas, garantir o abastecimento – porque fornecemos produtos essenciais e, no meio de toda a confusão, só falta não ter fralda para o nenê e pasta de dente, e aumentar o impacto social. Meu primeiro sentimento é de gratidão e responsabilidade, porque eu já parto de um local privilegiado. O segundo é, eu digo para você, surpreendente: a nossa capacidade de adaptação. Eu não tinha conhecimento, que como indivíduos, como grupo e como empresa, nós podíamos mover coisas muito mais rápido e ir se ajustando. Foi muito lindo poder ver isso e agora eu quero usar mais esse músculo.

Você sentiu algum tipo de demanda nova por parte do colaborador da P&G?

Somos 4.000 funcionários na P&G. Desses, 1.000 foram trabalhar de casa e 3.000 seguiram trabalhando nas fábricas e nos pontos de venda. Então acho que vale a gente separar, porque foram realidades muito diferentes. Aos que estavam no escritório, ou que foram para casa, a gente logo conseguiu prover uma infraestrutura. Criamos um comitê de crises logo depois do Carnaval que, antes de a coisa estourar, já nos deixou bem preparados. Tínhamos uma preocupação com a saúde mental das pessoas e acompanhamos isso bem de perto. Nossa equipe médica fez um trabalho excelente e fortalecemos um programa chamado Vibrant Living, que foi transformado.

Ele oferecia no escritório, por exemplo, manicure e aula de ioga. Pivotamos esse programa: fizemos um calendário de todas as aulas virtuais e reforçamos os programas de psicólogo e nutricionista, tudo uma semana depois de estarmos em casa. Em vez de cortar o vale-transporte, ele virou vale-refeição que poderia ser usado com comidas de delivery. Já nas quatro fábricas o pessoal teve que trabalhar mais do que nunca com mais de 20 protocolos diferentes. Lá foi um trabalho grande de ajuste dos protocolos, da teoria na prática, que demandou muito. Em Manaus, uma cidade que colapsou, fomos fazer campanhas nas casas dos funcionários. As demandas para sensibilização do que era necessário transcenderam até a responsabilidade do empregador.

Que momento vocês vivem hoje?

As fábricas seguem, o ponto de venda segue e estamos reabrindo o escritório desde julho. A primeira fase é um grupo piloto, algo com 5% ou 7% das pessoas. O objetivo é testar os protocolos na prática, porque nosso aprendizado das fábricas mostrou que, na prática, o protocolo que se desenha na prancheta pode precisar de ajustes. Antes de chamar mais gente, a ideia é testar na prática o que funciona, o que não funciona, o que que falta. A segunda coisa é redescobrir o valor do escritório, porque nós estamos convencidos que o futuro é uma forma de trabalhar mista, porque há coisas para as quais ele realmente não é necessário.

E o que você imagina que deva sobrar como lição disso tudo?

Óbvio que sinto uma falta enorme da proximidade física, até porque sou uma pessoa que se energiza muito na proximidade de outras e adoro trabalhar com minha equipe. Mas acho que, como a pandemia é um problema que atingiu todo mundo, ela meio que democratizou a dor, se é que posso dizer assim. E criou uma enorme empatia. Talvez a gente realmente se torne seres humanos mais tolerantes, né?

Lucas Seixas/UOL

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