Por:THAIS LAZZERI
Na tradição indígena, as mulheres são as guardiãs das sementes e da biodiversidade. Carregando essa responsabilidade, em 2019 elas marcharam no Congresso Nacional juntas, pela primeira vez na história, “pelo direito ao território e à vida”. Mas, quando as manifestações como essa terminam, elas voltam para suas comunidades e se tornam alvos solitários por defender suas terras, suas origens e a sobrevivência de seus povos. São vidas marcadas por violências e lutas, como mostram as histórias de mulheres contadas neste especial da Repórter Brasil.
No interior do Amazonas, na região de fronteira do Alto Solimões, os brancos determinam quem os Kokama são: não descendentes de indígenas. Sem o reconhecimento da identidade e do direito ao território, a pressão de invasores ilegais nessas terras cresceu. Há mais de um ano Milena Kokama, 62, mãe, avó e liderança, vive exilada dentro do próprio país por denunciar invasões de grileiros e madeireiros. Ela já foi caçada por criminosos nas ruas de Manaus, capital do Amazonas, e até dentro de um prédio do governo brasileiro.
No Mato Grosso do Sul, acontece o inverso. O branco acredita poder determinar que os indígenas Guarani Kaiowá na cidade de Dourados são, na verdade, invasores paraguaios. E, por isso, não merecem respeito. Em agosto deste ano, a desumanidade foi notícia: jornalistas de um programa local compararam indígenas a animais famintos que rasgam sacos de lixo em busca de comida. É nesse barril de pólvora que resiste Jaqueline Gonçalves, 30, liderança que teve a casa banhada por combustível em janeiro por denunciar violações de direitos humanos.
No Maranhão, até a Polícia Federal chama os indígenas Akroá Gamella de “os que se dizem índios”. Como tantas outras comunidades ameaçadas de desaparecimento durante a ditadura militar, os Akroá Gamella esconderam, por décadas, a identidade como forma de proteção. Considerados “extintos” pelos brancos, tiveram suas terras invadidas – há até um processo de loteamento pelo Incra. Quando se autodeclararam indígenas e buscaram retomar o território, foram tachados de invasores. “Aqui é ameaça de dia, de tarde e de noite”, afirma a liderança *Pjhcre, mãe solo que vive com os filhos em uma área de retomada e que preferiu falar sob condição de anonimato. “Aqui nem criança escapa.”
Quem tem direito de dizer quem é índio ou não?
Gerações de lideranças femininas indígenas estão se articulando em todo o país e assumem diariamente o risco de lutar pelo que acreditam, ao lado de outras referências das comunidades. “Negar nossa identidade é uma ação tão violenta quanto assassinar ou ameaçar uma liderança. O racismo e o etnocídio matam corpos vivos”, afirma a educadora e ativista indígena Célia Xakriabá.
“É como dizer para um descendente de italianos que ele é bisneto de um português, o que não faz o menor sentido”, ilustra a antropóloga Marta Maria do Amaral. “Quem tem o direito de dizer quem eu sou? Isso é ilegal”, pondera a especialista, também ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), entre 2012 e 2013.
Como mostram as histórias contadas logo abaixo e entrevistas feitas com pesquisadores, procuradores do Ministério Público Federal e mais de 30 lideranças indígenas, o reflexo da política implementada pela gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foi a escalada de violência contra as famílias indígenas.
Invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio saltaram de 109 casos em 2018 para 256 em 2019; e os conflitos territoriais triplicaram, segundo dados do recém-publicado relatório anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). A Funai não retornou os pedidos de entrevista feitos pela reportagem.
Na avaliação de especialistas, a eleição de Jair Bolsonaro trouxe consigo a política anti-indigenista da ditadura militar, anterior ao processo de redemocratização brasileiro.
“A aparente incoerência nos discursos é uma estratégia muito bem articulada deste governo para tirar dos indígenas o direito à autoidentidade e, depois, negar o território. É um escândalo e algo inédito vindo de um chefe de Estado, mas o Brasil ainda não ligou as peças dessa quebra-cabeças”, afirma Marta Maria do Amaral. Ela não está só.
“Eu não sei onde meu corpo não sente dor por tanta ameaça, porque minha alma sangra. Ela grita e, quanto mais grita, menos alguém ouve a gente”
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