Ela criou a neta vendendo churrasquinho no Bexiga. Sua história virou filme.

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No Por: Matheus Pichonelli

Maria das Neves de Almeida deixou o interior do Ceará aos 13 anos para trabalhar como faxineira em São Paulo. Fugia da violência do pai, dono de um bar onde certa vez matou um cliente à sua frente. O corpo caiu aos seus pés.

Ela tinha 10 anos.  Aos 14, ela conseguiu emprego na pensão de um imigrante italiano no Bexiga, onde se tornou uma espécie de xerife, recolhendo os aluguéis, limpando os quartos e mediando conflitos.

Para complementar a renda, à noite vende churrasquinho há cerca de 15 anos na frente do casarão tombado, perto de duas famosas casas noturnas frequentadas por roqueiros.

Foi assim que ela estudou os filhos e a neta, Ágatha Helen – uma jovem de 20 anos que se formou no Senac e hoje mantém uma clínica de estética no bairro que já foi um quilombo, ponto de chegada de italianos e nordestinos na capital paulista e cujo nome ora é grafado com “e”, ora com “i”, Bixiga, numa alusão à forma coloquial de pronunciá-lo.

Frequentador, durante anos, dos churrasquinhos da dona Maria, o cineasta André Meirelles Collazzo queria contar, em seu primeiro longa de ficção, o lado menos conhecido desse sincretismo à paulistana que desembocou no Bexiga a partir do século 19 (o lado italiano da história é farto tanto na música de compositores como Adoniran Barbosa quanto nas páginas de Alcântara Machado, de “Brás, Bexiga e Barra Funda”). “Eu queria entender o bairro para além do que é narrado”, diz o diretor em entrevista ao blog.

Collazzo trabalhava em um estúdio vizinho à pensão comandada por dona Maria. Foi lá que viu a pequena Helen crescer, ouviu histórias e testemunhou cenas de violência, despejos e ao menos um rapa promovido por guardas municipais, que certa vez recolheram as ferramentas de trabalho de dona Maria.

“Helen”, que entra em cartaz em 16 de abril, conta essas e outras histórias pelo olhar de uma criança, interpretada por Thalita Machado, que sonha em dar de presente para a avó uma caixa de maquiagem em seu aniversário.

Moradora do bairro, Thalita foi escolhida entre cerca de 400 estudantes das escolas locais. Segundo o diretor, ela já era uma atriz sem ainda saber – e, como sua personagem.

No filme, a dona Maria da vida real ganha o nome de Graça, e é interpretada pela premiada  Marcélia Cartaxo. Quem também está no elenco é o quase nonagenário Tony Tornado.

Uma favela que ninguém vê

Quem passa do lado de fora de pensões (ou cortiços) como os de dona Maria não tem ideia do contraste: por dentro, fachadas tombadas; atrás, puxadinhos que viram verdadeiras favelas onde habitam as cozinheiras e os manobristas, parte deles vindos do Nordeste, que trabalham nos estabelecimentos herdados pelas famílias italianas – tudo isso literalmente embaixo do nariz da área rica da cidade, perto da da Avenida Paulista (um universo paralelo que os moradores da pensão visitam apenas em ocasiões especiais).

Segundo o diretor, a insalubridade desses quartos de pensão transforma as calçadas em verdadeiras salas de estar. (A vida dos moradores do bairro é também tema de um curta de ficção que Collazzo levou ao Festival de Tiradentes, mas que ainda não tem data de estreia.).

Pelo olhar da criança, esse ambiente conflituoso ganha cores na ficção, como um espaço quase idílico de construção de memórias. Nas ruas que boa parte dos paulistanos costuma conhecer apenas de passagem, nos carros e ônibus, Helen circula, faz amizades, joga bola, frequenta a igreja da Achiropita, enfrenta os meninos da escola e assiste aos desfiles e protestos de grupos como o Ilu Obá de Min, de Beth Beli, que surge no filme como uma homenagem a Marielle Franco. “Eu conheci a Helen desde os 3 anos de idade. Ela era muito viva, corria e andava o tempo todo, como no filme. E tinha as mesmas questões familiares. O pai tinha 14 anos quando ela nasceu e a mãe, 13”.

Em uma entrevista de preparação do roteiro, a avó contou ao diretor que cuidou da Helen real desde o nascimento. “Falei pra mãe dela: vou criar pra nós duas. Tirei ela do hospital. Não dei leite, não. Tomava leite B, da padaria”, contou. “Agora o que eu vou deixar pra eles eu sei o que é. Os estudos e alguma coisinha. Mas o estudo é o que vale mais.”

O cineasta relata que, em um festival na França, onde o filme foi apresentado, os espectadores demonstravam espanto com o fato de a personagem chamar os pais, ausentes na trama, pelo nome.

“A Helen é uma personagem que não foi vencida pelo sistema que se reproduz. Ela furou esse sistema por causa da avó”, diz o diretor.

Ele descreve a dona Maria da vida real como alguém reservada que tem no trabalho a dimensão central da própria vida. “Ela não tem lazer. Foi no cinema com a neta uma vez só. E dormiu.” “Já nasci assim, carregando panela de comida na cabeça. Carregava lata d’água. Na roça comecei com 9 anos.

Também cuidava da bodega do meu pai lá no Ceará. Um cara muito ruim. Carrasco. Gostava de matar as pessoas”, disse ela, na mesma entrevista.

Collazzo afirma que, por causa de um acidente vascular cerebral, dona Maria foi proibida pelos médicos de vender churrasco. Isso porque, com os anos, a exposição à fumaça rendeu a ela sintomas de uma pessoa fumante. Mesmo assim, apesar de ter diminuído o ritmo, ela ainda pode ser vista no mesmo endereço de sempre, a sua “sala de estar”.

A escolha de Marcélia Cartaxo para o papel, segundo ele, não é por acaso. Em “A hora da estrela” (1985), filme inspirado na obra de Clarice Lispector que lhe rendeu o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim, a atriz paraibana vive também uma migrante nordestina que, órfã, procura emprego e afeto em meio à hostilidade da capital paulista Se aquele filme tivesse uma continuação, a Macabéia teria se tornado uma dona Maria”, diz o diretor.

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